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Psicologia da Evolução Possível ao Homem

DNA

Um livro com estilo iniciático de P.D. Ouspensky, porém com extrema lógica no descobrimento de si mesmo.  Para compreender algo complexo é necessário desdobrar em partes aquilo que vamos analisar, dividir um grande sistema em áreas onde se executam subrotinas como em um programa de computador. 

Assim como o computador pode executar tarefas em modo de alto desempenho (overclock), modo normal, modo de segurança ou modo de suspensão como se estivesse dormindo, Ouspensky subdividiu nossos estados de consciência pois cada um deles processa de forma diferente o que precisamos. 

Os quatro estados descritos sendo eles o sono, estado de vigília, consciência de si e consciência objetiva envolve não só a forma como se processam os pensamentos como a forma como se interpreta a realidade. As funções da máquina humana interagem como intérpretes da relação com o mundo.

Dentro do estado considerado mais primitivo da consciência, o sono, um sono fisiológico, nosso corpo dorme, ou melhor, descansa. O corpo dorme, mas o coração não para, os pulmões continuam a respirar e todas as funções fisiológicas estão ocorrendo em seus automatismos. Mas então quem dorme? Poderíamos dizer que o corpo não dorme pois está totalmente ativo, mas a mente dorme? Ainda assim não temos um sono totalmente, pois a mente sonha. Do pesadelo aos sonhos lúcidos a mente está ativa de alguma forma e quando acordamos lembramos de atividades, conversas, aventuras e diferentes imagens de coisas que podem ser memórias ou que nunca vimos. Se a mente também trabalha gerando os sonhos e pesadelos então volto à pergunta: Quem está dormindo?

Poderíamos dizer então que o indivíduo que dorme é a consciência, aquele que diz “eu sou”, aquele que detém o foco dos pensamentos e percepções.

Diz Ouspensky que não há causa nem resultado nos sonhos. Já Freud e Jung consideravam os sonhos de alguma forma. Freud considerava a manifestação de desejos e envolvimento de memórias nas suas ocorrências. Já Jung via símbolos nos sonhos, a possibilidade ampliar seu significado para interpretá-lo e as funções compensatórias que os sonhos poderiam oferecer. Seria então o sonho um lixo mental que não devemos dar atenção ou ele é a expressão do nosso inconsciente, dos desejos reprimidos, parábolas do que a nossa compreensão precisa alcançar, como um buraco onde nosso inconsciente vaza?

Talvez o sonho seja um empurrão para a consciência de modo a chamar a atenção para a direção certa. Em outros casos é possível que seja só a mente extravasando o conteúdo não processado corretamente como conflitos e sofrimentos. 

Já no estado definido como sono desperto, estamos fisicamente em atividades com movimento, em um estado conhecido como vigília. Da mesma forma todos os automatismos físicos continuam funcionando porém há mobilidade dos membros no sentido de locomoção. Porém esse estado também pode confundir-se com o sono. O ser humano, ainda que em vigília, pode por momentos alhear-se dos sentidos locais e projetar seu foco mental para outra direção. Estaria ele dormindo ainda que acordado? Poderíamos dizer que sim pois ele está em um estado semelhante ao sonho. Estaria ele inconsciente? Penso que não. Pois ele detém consciência porém não do ambiente físico que está no momento. Sua mente se interessa e projeta-se para outra realidade. Ela pode ser uma memória, uma visão (quem sabe clarividência), uma imaginação do futuro. Entendo que alhear-se do momento não é estar inconsciente é só uma mudança de foco mental. Outra questão é se isso é produtivo ou não. De modo geral a mente busca aquilo que lhe dá prazer ou aquilo que lhe aflige buscando de algum modo depurar a situação.

A consciência de si envolve algo diferente do simples fluxo do pensar. É um por quê pensar nisso e não naquilo, de onde vem o pensamento, é questionar os motivos da atenção a ele e suas reações. Se me aflijo com um pensamento, analisar de onde ele vem, em que momentos vem, quais são minhas reações físicas quando penso, quais as memórias que me remetem.

Quando imagino a mente e sua organização penso no ser consciente do eu como uma pessoa em uma sala de monitoramento de câmeras com diversas telas e botões para reações às emergências. As telas são nossa visão física do mundo, nossas memórias que surgem aqui e ali, algumas bem nítidas, outras com imagens turvas pois são quase apagadas porém geram reações incompreensíveis. Outras telas são pensamentos aleatórios das nossas reações calculando o que fazer e muitas vezes imaginando, criando imagens de coisas possíveis ou impossíveis. Todas essas influências geram reações de quem comanda essa sala que dispara alarmes, fecha portas ou abre.

Há uma diferença grande entre quem está no sono, ou no sonho acordado (vigília) e quem está consciente. Poderíamos dizer que a vida dos dois primeiros é quase animal irracional pois vive sem saber por quê vive. O sonolento e sonhador trabalha, come, bebe e reproduz em um ciclo sem função maior. Ele segue uma manada de seres semelhantes que se atiça e se espanta de acordo com os movimentos das massas. Ele tem uma religião porque todos tem, vota em quem todos votam e mede a realidade pelos grandes veículos de comunicação. 

O consciente de si, ou pelo menos que se acredita consciente, busca uma razão, uma lógica, questiona a vida e sua função nela, que toda história pode ter vários aspectos e formas de se interpretar. 

Quanto a consciência objetiva é algo muito além, pois se já é difícil expressar como é estar consciente de si, quando mais definir algo tão expansivo. 

Talvez a consciência objetiva seja o verdadeiro “religare”  da religião. O momento onde nos reconhecemos como parte de um coletivo em diversos aspectos, como natureza viva, como entidade pensante, como pertencente a um cosmos. Poderíamos em uma comparação grosseira dizer que seria como ter um computador sem internet, com somente informações pessoais, que em dado momento conecta-se e passa a acessar o coletivo e compreender mais os outros, a si mesmo entendendo o objetivo das coisas e para onde todos vamos. É uma comparação interessante pois os computadores off line não atualizam seus programas de fábrica, os drivers, e acabam com o tempo mais lentos e com conflitos. Já os que estão on line atualizam constantemente seus programas de fábrica e estão sempre mais rápidos, sem travamentos e sem contaminações de vírus digitais.

Se fosse no campo da religião e espiritualidade diria que o indivíduo com consciência objetiva é o profeta, o canalizador da espiritualidade superior, o oráculo. Ele tem uma visão além, pois se conecta com algo superior que lhe dá compreensão da realidade e entendimento do caminho futuro.  

Para a manutenção desses estados de consciência Ouspensky definiu a máquina humana em sete funções: o pensamento, sentimento, função instintiva, motora, o sexo, emocional superior e intelectual superior.

As funções mais básicas como a instintiva e motora, nos aproxima mais do nosso mundo físico e sua interpretação. A função do pensamento processa as impressões, compara e cria ambiente para a função do sentimento gerando emoções. O autor não se deteve na função do sexo. Apesar de ser uma muito específica não adentrou na sua relação do ser com o mundo neste aspecto. Ele relata que é uma função a ser estudada somente depois das anteriores e que qualquer irregularidade ou anomalia nesta função torna impossível o estudo de si. 

É uma observação curiosa pois socialmente no desenvolvimento das pessoas uma abertura precoce para a sexualidade sem uma compreensão de outras funções. Existe uma importância e quase uma mitificação da sexualidade. Na adolescência principalmente é o fruto proibido na descoberta de si mesmo. Como disse Ouspensky, com razão, sem o entendimento das funções anteriores fica difícil compreender a sexo. Você abre a caixa de Pandora e depois vai se preocupar com os pensamentos e emoções. Claro que isso se torna um grande gerador de conflitos, senão um dos maiores no quadro das aflições humanas. Talvez por isso para Freud tudo envolvia o sexo.

Na função emocional superior que Ouspensky associa à consciência de si nos inspira a entender que para alcançar a consciência de si precisamos de bom entendimento de nossos estados emocionais, de não sermos guiados em nossas reações meramente por rompantes. Não significa um padrão de emoção linear, mas um bom conhecimento da dinâmica da emoção nas outras funções. 

Na função intelectual superior ele associa ao estado de consciência objetiva. Segundo o dicionário Oxford em seu sentido filosófico intelecto é “em sentido lato, faculdade ou atividade pensante inerente à condição humana, capaz de conferir sentido, limites, ordem e medida ao universo e a seus seres; inteligência, entendimento.”

É curiosa a interpretação sobre conferir sentido, limites, ordem e medida ao universo. 

Existe um autor no campo espírita das psicografias chamado Emmanuel que em sua obra O Consolar datada de 1940 disse “O sentimento e a sabedoria são as duas asas com que a alma se elevará para a perfeição infinita”, o que nos parece muito com o emocional e intelectual. 

Todos esses estados são passos para que o homem chegue a compreensão de si e que vislumbre sua evolução possível. Notoriamente, como o livro descreve, não há como evoluir para algo que não se conhece. Como posso aspirar dominar uma profissão que não conheço? Da mesma forma não posso desejar ter virtudes as quais não experimentei. Como posso vislumbrar os benefícios desse novo pensar, desse novo comportamento se nunca o tive. Não seria mais fácil estacionar naquilo que já conheço? 

Neste ponto entram as influências exteriores. O homem observa o meio a sua volta e pode interpretar a vivência de outros seres. Se ele reconhece que alguém vive bem tendo tal hábito ele vai pensar se em si mesmo tal experiência não lhe traria resultados. Afinal assim que são vendidos os miraculosos programas de dieta. Observamos tanto em comerciais de televisão as pessoas experimentado produtos e transparecendo ter uma boa experiência neles. Afinal nunca se falou tanto em ter uma “nova experiência” usando um produto. 

Cada qual desses seres humanos mais ou menos influenciáveis em sua consciência Ouspensky classificou em sete categorias onde pode uma prevalecer sobre a outra, a não ser que tenha chegado a última delas para saber administrar todas. O homem físico, o emocional, intelectual, o que é produto de uma escola, o que tem unidade e consciência de si, o que adquiriu consciência objetiva e por último o que alcançou o Eu permanente e uma vontade livre.

O mais interessante é o quarto, que já é produto de uma escola. Como o autor diz ele não nasceu como tal. Ele debateu-se em conflitos entre o homem físico, emocional e intelectual para então criar em si um centro magnético, algo que o gravitacione para uma direção específica. Fugiu da linhagem do homem materializado em suas necessidades físicas e momentâneas para questionar-se no mundo das idéias. Ele adquire então novas linguagens para relacionar-se com o mundo. Aprendeu a buscar fugir das quatro manifestações que são mentir, imaginar, expressar emoções negativas e falar sem necessidade. 

Uma ressalva aqui para a manifestação da imaginação. No campo criativo não há como ter sucesso sem imaginação. Até Einstein disse que a imaginação é mais importante que o conhecimento pois sem ela não se pode cogitar coisas novas. Porém a imaginação para o meramente sonhador e em sentimentos como o de ciúme pode ser extremamente destrutiva. Imaginar-se realizando uma tarefa importante é uma parte do impulsionamento da vontade para a ação. 

Existem dois problemas para a descoberta de si relatados por Ouspensky que são a identificação e a consideração. 

O ser humano se vê como um produto de suas reações e é difícil separá-lo de suas próprias idéias e sentimentos, assim como impedi-lo de comparar-se com os outros. Ele confunde sua reação às coisas com seu eu, sua unidade e caracteriza-se como tal e dessa forma associa-se a grupos de comportamento. As redes sociais tem fomentado muito a identificação e consideração.

Podemos então perceber o anseio de Ouspensky em tentar dar definição a Psicologia. O que estamos estudando no ser humano? Sua essência ou os produtos de seu comportamento, a repetição de influências? Estamos tratando da reação das aflições ou da causa? E mais, estamos esperando só o conflito aparecer para agir ou estamos traçando um caminho para que o homem se encontre em sua plenitude? Talvez estejamos mais preocupados em apagar os incêndios em vez de preveni-los.

Toda mudança no panorama de vida vai informar ao inconsciente desconforto e incerteza. Isso por si só já criará grande desafio para uma mudança e direcionamento para um centro magnético. Ter este centro significa que poderá estar saindo do roteiro de vida conhecido pelos seus pares mais próximos o que muitas vezes gera o efeito “ovelha negra da família”.  Se o ambiente a sua volta em questões familiares, sociais, culturais e religiosas entra em conflito com o centro magnético o esforço será brutal para que possa projetar-se para fora do círculo de realidade que vive. 

Haverão influências que vão puxá-lo para o conforto do que já vive e que abastece o seu sensorial e emocional mais primário que segundo Freud pode trazer mais realização pois altera o homem fisiologicamente. Já outras influências o levarão a ideias mais apuradas como a arte onde Freud dizia que poderia se encontrar sublimação.

Para isso Ouspensky descreve o papel das escolas como de suma importância para a transformação. Só elas podem potencializar o centro magnético a vencer as influências mais primitivas. Na escola vai estudar a si mesmo, vai trabalhar com outros com os mesmos objetivos, vai trabalhar para a escola a fim de adentrar mais no mundo que propõem viver.

Outro fator interessante neste estudo é a memória. Ideias novas despertarão sentimentos novos que facilitarão o registro na memória de modo a estabilizar e solidificar o novo direcionamento do ser humano levando a novas associações que facilitam o discernimento de quem é, o que pretende e para onde vai. 

Os centros têm papel importante na transformação pois no processo de melhoria do ser trabalham em conjunto. Para se ter emoções positivas precisamos da consciência de si enquanto para ter emoções negativas basta nos entregarmos a imaginação, identificação ou consideração. Quanto mais inconsciente mais voltamos aos nossos aspectos primitivos de sobrevivência e nosso corpo responde ao anseio pela vida com medo, ansiedade e diversos disparos fisiológicos que reverberam nos outros centros. 

Parece um trabalho complexo essa escalada de controle dos centros mas Ouspensky dá uma ideia bem simples de onde começar que poderia ser o centro motor. Dominar um centro já oferece alguma consciência de si e artes marciais ou dança podem trazer esse controle e harmonia.

Já no caminho da mente, ao tentar ficar consciente haverá o conflito com os próprios pensamentos que podem fazer emergir a imaginação. 

Cada qual no seu tempo pode-se vencer aos poucos com esforço. 

De qualquer forma conhecer algo não torna o ser humano melhor, isso só lhe dá uma informação. Ele precisa que a informação altere seu comportamento.

O autor faz um paralelo entre o saber e o ser, mas ao mesmo tempo diz que um artista não pode ter um espírito perverso ou incoerente. Sabemos que o conhecimento artístico deveria sim desenvolver a sensibilidade de sentimentos, porém nem toda a arte nasce de sentimentos afáveis, muita vezes eclodem do conflito pessoal do artista.  Existem casos de artistas refinados em sua arte mas que são repugnantes com as pessoas.

Isso leva a outro pensamento de Ouspensky sobre a compreensão. Como dissemos você pode conhecer algo, saber calcular, analisar e ainda assim não compreender o real valor. Por isso conhecer toda a técnica da meditação não lhe oferece o resultado da mesma. Haverá o processo de compreensão. 

Dá-se aí então o equilíbrio de Ouspensky entre o saber e o ser. Se você for só ciência terá um conhecimento frio das coisas. Já o ser sem conhecimento pode se tornar joguete de muitas situações. Talvez por isso existam sociedades com sua infraestrutura tão desenvolvida, mas pobres nas relações pessoais e outras com melhor empatia entre os seres, porém com pouca evolução em sua infraestrutura.

Quando vamos alcançar o equilíbrio?

Em ambos os aspectos existe a dificuldade da compreensão das coisas. O autor queixa-se em sua época da ideia falsa que se pode ter compreensão diferente da mesma coisa. Que só há uma compreensão para cada situação caso contrário seria incompreensão ou compreensão incompleta. Mal sabe Ouspensky que até hoje é assim e nunca foi tão forte essa ideia de diferentes visões. Mas como ele disse isso se atribui a diversos tipos de conhecimentos, vivências, culturas  e coisas do tipo. Ainda assim a realidade é a realidade independente do que veja através dos seus olhos.

Ouspensky comparou essa mistura de compreensão aos sete tipos de homens distribuídos em círculos um dentro do outro, do 1 externo até 7 o mais interno como em uma cebola. 

Os que estão nos círculos 1, 2 e 3 tem pouco ou nenhum conhecimento de si e interpretam o mundo precariamente sem se entender mutuamente. Para que possam se entender e chegar a algo precisam pelo menos penetrar o 4º círculo. Não há como pular etapas. 

No modelo de Ouspensky podemos observar que o corpo em seu conjunto agindo como mente, seus sentimentos, intuições e um universo complexo mas que precisa trabalhar tão sincronizado quanto as órbitas do sistema solar. 

Não há como realizar essa tarefa sem a lembrança de si, o que nos parece muito com a atenção plena. Sem isso somos como personagens de um drama que tem qualquer final, menos o feliz. 

Muitas pessoas falam de olhar para si mesmo, ter um olhar para dentro de si, que tudo temos dentro de nós, que até Deus está dentro de nós. Não podemos descartar nenhuma área para direcionar o ser humano para seu objetivo maior que é reconhecer-se em si mesmo. 

Talvez de início tenhamos medo desse olhar para dentro de si, talvez tenhamos até nojo do que podemos enxergar, mas é um processo de saneamento necessário. E não é como um despertar religioso de acesso único. É um exercício contínuo para toda vida pois para cada círculo que adentramos no modelo de Ouspensky descobrimos novas nuances de si mesmos.

Anderson Neomar Gomes

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